tempo teimoso

sexta-feira, 25 de abril de 2008

D. Revolução

Eram oito e pouco da manhã. O portão de ferro da entrada não estava escancarado. A criançada não brincava no recreio da frente. Nem no de trás. A menina Clotilde avisava assim quase sorrateiramente todos os que iam chegando:

"- Vai pra casa piqueno que a D. Revolução chegou esta noite".

Também voltei. De caminho, fui espreitando os burros do vizinho Seromenho, a mercearia do Joaquim Guilherme, a venda da Bia e metendo conversa com o Manel dos Pincels que, empoleirado na sua velha escada de madeira caiava as varandinhas da Porta dos Quartos.

- Atão menina, o Senhor Professor caiu da cadeira ou foi a senhora dele que teve menino?

- Diz que a D. Revolução tá na escola ...

fui dizendo, enquanto amarinhava escadas acima, abrindo rasgão no engomado bibe branco e pintalgando as tranças já tão meio à banda.

A minha avó espreitou do postigo:

- E quem é que vem a ser essa da D. Revolução?
- Eu cá acho que deve ser ...

E nem fui a tempo de dizer "inspectora". A minha avó já bradava lá de cima que a magana que tinha acabado com bibe tão bem costurado bem se podia ir preparando para escrever vinte cinco linhas de "A bata da escola é branca de neve, sem nódoas nem buracos".

Depois, no meio do alvoroço do pessoal, das cantorias, dos soldados que sairam do quartel sem ser a marchar, do coro de "O povo unido jamais será vencido" a minha avó esqueceu-se do castigo e tratou de mandar chamar o Manel dos Pincels para vazar, limpar e caiar a cisterna, não fosse o diabo tecê-las, o tempo voltar pra trás e a família precisar dum lugar seguro para se esconder não sabia de quem.


Na folha de vinte e cinco linhas só escrevi:

Lagos, 25 de Abril de 1974

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